Ressentimento e Dignidade Identitária em Fukuyama

Ressentimento e Dignidade Identitária em Fukuyama

Identidades: a Exigência de Dignidade e a Política do Ressentimento, de Francis Fukuyama, é a obra que serve de base ao artigo publicado um ano depois, na Foreign Affairs, com o título “Against Identity Politics: The New Tribalism and the Crisis of Democracy”. O ponto de partida de Fukuyama é a difusão dos populismos nacionalistas com uma forte expressão autoritária que estão em expansão por todo o mundo. O que o autor visa é, então, reconhecendo esse cenário, entender as causas da mudança da Democracia liberal para um tipo de regime cada vez menos conotado com aquela. Para o autor, o slogan de Donald Trump, “America first”, é o sintoma mais evidente do modo como os líderes populistas procuram estabelecer uma ligação direita com o “povo”, desconsiderando as instituições que formam o garante dos Estados democráticos, como os tribunais, o parlamento e os meios de comunicação social. Esta vaga de populismo desde o começo de 2000, corresponde a um recuo global face à terceira vaga de democratização proposta por Huntington.

Procurando explicar o fenómeno, Fukuyama alega que as democracias atuais não foram capazes de garantir o reconhecimento de dignidade a todos os sujeitos, mesmo que em princípio tal esteja presente por via dos Direitos Humanos, do primado da lei (rule of law) e pelo direito de voto. A presença desse princípio não traduz que “as pessoas sejam respeitadas igualmente na prática, em particular os membros dos grupos com um historial de marginalização” (p. 15). A situação expande-se com a presença das questões identitárias que funcionam como força motriz da política atual. Acresce que entre 2000 e 2016 metade dos norte-americanos viu os seus rendimentos estagnarem, enquanto a globalização agudizou disparidades e gerou uma onda de left-behind. A consequência foi a emergência de um fosso entre ricos e pobres, onde a classe média se foi esvaziando.

O autor salienta, então, a mudança de paradigma da luta política. Se ao longo do séc. XX a esquerda lutou pela igualdade, se colocou ao lado dos trabalhadores, dos sindicatos e buscou uma redistribuição da riqueza mais equitativa, visando a justiça social, com o século XXI passou a centrar-se na defesa das minorias ou dos grupos tidos por marginalizados, “negros, imigrantes, mulheres, hispânicos, a comunidade LGBT, refugiados e outros parecidos” (pp. 24-25). Por seu turno, a direita passou da redução do peso do Estado e da promoção da iniciativa privada para uma orientação nacionalista de proteção da identidade nacional, não raras vezes associada à raça, etnicidade ou à religião. Tanto à esquerda quanto à direita, o que temos é um alinhamento em torno das políticas de identidade. Para Fukuyama, sempre partindo da referência norte-americana, as lutas identitárias não podem ser reduzidas à tensão entre nacionalismo branco e realidade do campus universitário. Pelo contrário, as políticas identitárias têm um espectro mais amplo, ligadas ao renascimento de nacionalismos e de um islão politizado, bem como a luta pelo reconhecimento por parte de grupos marginalizados pode originar ressentimentos. De modo sistemático, a política identitária materializa-se em torno de valores como a Nação, a religião, a etnicidade, a orientação sexual e questões de género e em lutas que envolvem o reconhecimento de dignidade e ressentimentos pelo não reconhecimento. Por serem pós-materiais não se relacionam com a defesa de interesses económicos.

Ora, é a luta pela aceitação, pelo pertencimento e pela dignidade que estão, no entender do autor, na base do terrorismo jihadista, e não tanto questões religiosas, pois de outro modo milhões de muçulmanos apresentariam a mesma vocação para o terror. Nem mesmo a pobreza é, no seu entendimento, o fator determinante para a adesão a estes movimentos. Para ele, os jovens que aderem a estes movimentos encontram-se numa encruzilhada identitária, entre uma cultura dos pais que rejeitam e a do país de adoção de que não se vêm como parte integrante, pelo que é o no islão radical que encontram pertencimento (p. 92).

Por outro lado, o crescimento do populismo autoritário nacionalista pelo globo encontra, no entender de Fukuyama, razões num enfraquecimento da esquerda ligada às questões de classes (p. 98) num momento em que o contexto global é de recuo da prosperidade e aumento da precariedade. Assim, a esquerda ao tornar-se identitária perde a preocupação com a redistribuição da riqueza, com a igualdade e o equilíbrio entre ricos e pobres. De modo evidente, a direita nacionalista tem sabido tirar proveito de um ressentimento social entre as populações mais pobres, dado que Fukuyama considera não ser novo, mas antes uma tendência com mais de 100 anos, em razão da invisibilidade da pobreza, a qual origina sentimentos de indignidade (p. 103). Para Fukuyama, a raiz não reside apenas ou nem tanto na capacidade de o nacionalismo populista dar visibilidade, voz e um senso de dignidade aos ressentidos, mas no facto da esquerda ter abandonado a defesa dos explorados, a promoção da solidariedade de classe operária, para se focar “em grupos cada vez mais pequenos que são marginalizados de maneiras específicas” (p. 114). A dimensão universalista da esquerda deu lugar ao que se pode designar por causas e uma defesa do ideal do multiculturalismo. Assim, tanto as variantes marxista quanto a social-democrata foram deixando para trás a classe operária, as lutas pela igualdade económica, para se concentrar em batalhas culturais, pelo que “o que precisava de ser desfeito não era a presente ordem política que explorava a classe operária, mas a hegemonia da cultura e dos valores ocidentais que reprimia as minorias em casa e nos países em desenvolvimento no estrangeiro” (p. 137).

Assim, o ressentimento e sensação de invisibilidade e indignidade relaciona-se com a classe operária um pouco por todo o Ocidente. Nos EUA, a classe operária tem vindo a perder rendimentos desde a década de 1970, situação notória na comunidade afro-americana, a qual após a II Guerra Mundial migrou para cidades como Nova Iorque, Chicago ou Detroit, alimentando de mão-de-obra as indústrias do aço, do automóvel e da carne. A posterior desindustrialização resultante da globalização deu origem a bolsas de pobreza, com taxas de criminalidade e consumo de drogas a subirem abruptamente, com efeito na desestruturação da vida familiar, com um aumento de famílias monoparentais. O efeito foi de arrasto para classe operária branca a partir da crise de 2008, a qual virou o seu ressentimento para os imigrantes, os mais pobres [em Portugal conhecemos a narrativa sobre a subsidiodependência] e as elites. Considerados como indevidamente favorecidos, os imigrantes tornaram-se símbolo de ameaça à identidade nacional. As elites foram percebidas como corruptas e ineptas na solução dos problemas dos mais pobres, e no mundo rural, onde se solidifica a base de apoio aos movimentos populistas, as elites, consideradas citadinas e cosmopolitas, aparecem como ameaça aos valores rurais e tradicionais, tendo-se tornado um filão para o identitarismo trumpista, baseado na “religiosidade cristã, viver no campo, a crença nos valores tradicionais da família e categorias relacionadas com tudo isto” (p. 144).

Face a tudo isto, é notório que tanto a esquerda quanto a direita partilham uma mesma narrativa identitária: a de que o(s) grupo(s) que defendem estão ameaçados pelo outro lado, de que existem uma invisibilidade face a este(s) e de que as elites falham no seu papel. No meio disto há vidas concretas e não apenas ideias, como os milhões de imigrantes em situação irregular nos EUA, cuja expulsão em massa seria uma política grotesca à luz dos direitos humanos. Ao mesmo tempo que é necessário incluir os imigrantes na sociedade, e enquanto a esquerda vai focando as dignidades específicas e não como um todo, as redes sociais vão potenciando os conflitos e enfatizando as micropertenças. Por isso Fukuyama entende que “as políticas identitárias são o prisma pelo qual são agora vistas, na sua maioria, as questões sociais em todo o espectro ideológico” (p. 146).

Procurando uma solução, o autor não defende abdicar das referências identitárias, mas antes “definir identidades nacionais mais amplas e mais integradoras que tomem em conta a real diversidade das sociedades democráticas existentes” (p. 147). Trata-se de um nacionalismo diferente do séc. XX, cuja história deu origem à II Guerra Mundial. Reconhecendo que o Estado nacional permanece como único conceito capaz de criar democracias responsáveis, Fukuyama sustenta-se em Tocqueville e Huntington para defender uma ideia de democracia com cidadãos patrióticos, ativos e bem informados, e com uma cultura construída em torno de uma ética e cultura comum, dado que “é a cultura que é importante, não as identidades étnicas ou religiosas daqueles que tomam parte nela” (p. 183). Assim, o que Fukuyama busca é um tipo de nacionalismo doutrinal, que implica um sentido cívico e o exercício de determinadas virtudes (p. 184) que se baseiam na vontade de cidadãos racionais. É, no fundo, a crença num tipo de Estado liberal, democrático e nacional. Ora, para tal, é necessário que a esquerda aceite a ideia de Estado-Nação de feição democrático e liberal, e que abandone a agenda identitária e reencontre o seu legado cultural inclusivo e universal, em nome dos pobres e explorados.

Citação do texto: João FERREIRA DIAS, “Ressentimento e Dignidade Identitária em Fukuyama,” acessado a 28 Abril, 2024, in: <http://www.joaoferreiradias.net/5914/>.


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