Democracia Pluralista
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Winston Churchill afirmou, com a devida razão, que a democracia é o pior regime à exceção de todos os outros. Queria afirmar a imperfeição de um regime que, não obstante, foi de difícil implementação e que não é uma garantia, necessitando de permanente vigilância e garantia, como uma planta frágil, de estufa.
A Democracia baseia-se no primado da vontade popular. Embora tal afirmação preconize o essencial, o seu núcleo identitário, não é suficientemente excludente, nela cabendo diferentes formas de exercício do regime democrático. De modo mais densificado, mais sistemático, o regime democrático caracteriza-se pela realização da vontade popular, onde os cidadãos se governam a si mesmos por via direta ou por meio de representantes, a consagração e vigência de um amplo catálogo de direitos fundamentais, a interdependência e separação dos poderes (checks and balances), a eleição livre dos titulares dos órgãos do Estado. De igual modo, compreende uma submissão ao princípio do Estado de Direito (rule of law) que impõe limites e deveres ao Estado face aos cidadãos, que na passagem de subsídios a tal, se viram protegidos face à garantia de gozo de direitos de liberdade, e direitos sociais a exigir ao Estado, elaborados a partir do prius incondicional do Direito que é a dignidade humana. Simultaneamente, o princípio republicano impõe os titulares dos cargos detêm limitado e temporário poder, sobre o qual prestam contas, donde se verifica que a alternância impõe a existência de correntes plurais, expressas máxime em partidos políticos, pelo que o pluralismo é uma garantia de representação e um imperativo democrático.
Enquadrando o assunto, recupero um texto publicado no jornal Público, sobre a matéria. A partir da vigência do primado da vontade e soberania popular, diferentes tipologias democráticas são possíveis, e parece-me ser por aqui que se encontra a disputa coeva do campo político, entre (i) democracia maioritarista, (ii) democracia minoritarista e (iii) democracia pluralista-contratualista. A democracia maioritarista corresponde ao modelo lato sensu defendido pelos partidos da nova direita, que não querem a instauração de um regime autoritário, mas o aprofundamento de um sistema de governo à raiz do termo, i.e., centrado na vontade popular, tendencialmente recusando o sistema parlamentar, visto como um sistema de vícios e de corrupção (o queo leva tal eleitorado a tender para soluções messiânicas-populistas). Manifesta-se, de igual modo, – e daí a razão da designação – pela defesa da vontade e identidade da maioria, defendendo a noção de “Estado-Nação”, razão pela qual tendem a aparentar-se com os primórdios dos movimentos fascistas do século XX. Tal tipologia detém, portanto, por natureza a defesa da identidade nacional a partir da maioria, fazendo caber costumes, património imaterial e ideologia num mesmo quadro de referência e orientação política do Estado. Isto significa uma conformação das minorias à maioria, o que transporta o debate sobre a derrogação de um primado essencial do Estado Liberal-Social: a garantia das minorias face ao Estado expressa nos direitos fundamentais. Esta ótica maioritarista pode, efetivamente, permitir uma interpretação (discutível) de tais partidos como “racistas” e “xenófobos”, dado que no seu entendimento a acomodação da diferença cultural passa, em boa medida, pelo apagamento dos sinais mais notórios de identidade e pela integração nos valores dominantes. Em termos práticos, em Portugal é a “portugalidade” que orienta esta opção ideológica, com uma valorização do país católico, heterossexual, branco, europeu e de saldo positivo da experiência ultramarina. Esta orientação não implica a inexistência de manifestações alternativas, mas impõe a submissão destas à precedência da maioria.
Em sentido contrário, encontramos a democracia minoritarista. Corresponde esta a uma resposta à “tirania” da maioria. Nela, passámos da sinalização e procura de solução das falhas do modelo de democracia republicana e liberal, um ideal marcado pela igualdade perante a lei, mas que não corrigiu as desigualdades fáticas, as assimetrias sociais na partida que impossibilitam que o mérito seja o motor da vida económica do país, onde o racismo e outras formas de discriminação operam no sentido de desnivelar a sociedade, para uma tipologia de democracia marcada pela ideia de que há um sistema global marcadamente opressor (capitalismo) e cujo combate não se faz pela busca pela igualdade, mas antes pelo enfatizar das microidentitidades dentro da sociedade. É, portanto, uma tipologia de democracia que reivindica um tratamento ao caso concreto, i.e., a existência não de uma visão ampla de sociedade onde se deseja e procura a igualdade não apenas formal, mas material, onde ninguém seja discriminado nem beneficiado em razão da sua sexualidade, racialidade, condição económica, atitude face à religião, ou outra, mas antes do desenvolvimento de políticas públicas com base no primado do comunitarismo, uma visão de nichos sociais baseados na identidade étnica e/ou cultural. Neste modelo enfatiza-se a representatividade e o “lugar de fala”, demandando a inversão do primado maioritarismo, i.e., a submissão da noção de maioria às microidentidades, donde o Estado deve perder quaisquer elementos que, por oferecerem uma dimensão ampla de pertença, tendam a ser mecanismos de opressão.
Há, por fim, a democracia pluralista-contratualista, que se encontra cada vez mais entrincheirada entre as duas anteriores, e que corresponde ao esforço político-filosófico do pós-II Guerra Mundial e que nos trouxe o constitucionalismo, o pluralismo e o Estado Social. É, com efeito, um desenvolvimento imperfeito dos Estados Modernos através da integração gradual dos Estados numa ordem global de cooperação e defesa da dignidade humana através de um reconhecimento e vinculação de um catálogo de direitos fundamentais pessoais que devem ser preservados pelos Estados, cuja expressão maior é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta tipologia parte de uma ideia de chão comum, ou seja, de que a existência de diferentes correntes de pensamento, diversos partidos políticos e movimentos sociais, possuem vasos comunicantes que são, precisamente, esses direitos fundamentais inalienáveis e inderrogáveis, a submissão do poder ao Direito, a salvaguarda dos princípios elementares do constitucionalismo: a liberdade, a igualdade, a dignidade, o republicanismo. Trata-se, como sinalizado anteriormente, de uma tipologia imperfeita, que não foi, ainda, capaz de reorganizar a distribuição da riqueza, corrigir as assimetrias sociais e maximizar o mérito como motor económico, mantendo traços há muito identificados como falhas do capitalismo.
É nesta última tipologia que me enquadro. Reconhecendo o primado da dignidade humana como axial e apriorístico, e detendo uma visão programática do princípio da igualdade, que não se esgota na interpretação formal de igualdade perante a lei e de não-discriminação – negativa ou positiva -, na letra da lei, mas antes preconiza uma correção das desigualdades fáticas que afetam determinados grupos sociais e económicos, sem, todavia, deslocar o eixo de correção de desigualdades apenas para o plano das identidades. Dessa forma, entendo que a democracia pluralista-contratualista é aquela que melhor serve as sociedades, ao visar compensar desigualdades sem reproduzir divisões históricas, nem criar novas através de uma política identitária em que os sujeitos antes de cidadãos são membros de grupos específicos, que demandam por tratamento diferenciado. O princípio do chão comum é, precisamente, a afirmação de que é preciso que a sociedade não seja uma manta de relhados, mas que detenha um conjunto de valores – direitos humanos – e um determinado sentido de pertença, que inclui uma língua comum primária, sem apagar o multiculturalismo, mas sem fazer deste plataforma para ruturas sociais permanentes e uma construção de um Estado Vazio. É, portanto, o ténue balanço do bom-senso, entre o reconhecimento de uma identidade maioritária alargada e a defesa das diferentes formas de identificação e expressão cultural e identitária, em que nenhum dos eixos derroga o outro.
Plural Democracy
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Winston Churchill rightly said that democracy is the worst regime except for all the others. He wanted to affirm the imperfection of a regime that was nevertheless challenging to implement and not guaranteed, needing constant vigilance and assurance, like a fragile greenhouse plant.
Starting from the validity of the primacy of popular will and sovereignty, different democratic typologies are possible, and it seems that this is where the dispute in the political field lies between (i) majoritarian democracy, (ii) minority democracy, and (iii) pluralist-contractual democracy. Majoritarian democracy corresponds to the model defended in the broadest sense by the new right populist parties, which do not want to establish an authoritarian regime. Still, the deepening of a system of government at its root, i.e., centered on the popular will, tending to refuse the parliamentary system, is seen as a system of depravity and corruption (which leads such an electorate to lean towards messianic-populist solutions). They also manifest themselves – hence the name – by defending the will and identity of the majority, supporting the notion of the “nation-state,” which is why they tend to resemble the early 20th-century fascist movements. Such typology holds the defense of national identity from the majority, bringing customs, intangible heritage, and ideology into the same framework of reference and political orientation of the State. This means a conformation of minorities to the majority, which leads to the debate on derogating an essential primacy of the Social-Liberal State: the guarantee of minorities vis-à-vis the State expressed in fundamental rights. This majoritarian view may allow a (debatable) interpretation of such parties as “racist” and “xenophobic,” given that in their understanding, the accommodation of cultural difference passes, to a great extent, through the erasure of the most notorious signs of identity and integration into the dominant values. In practical terms, in Portugal, the national narrative guides this ideological option, with an appreciation of the Catholic, heterosexual, white, European country and the positive balance of the overseas historical experience. This orientation does not imply the inexistence of alternative manifestations but imposes the submission of these to the precedence of the majority.
In the opposite direction, we find minority democracy. This corresponds to a response to the “tyranny” of the majority. In it, we pass from the signaling and search for a solution to the flaws in the model of republican and liberal democracy, an ideal marked by equality before the Law, but which has not corrected the factual inequalities, the social asymmetries at the outset that make it impossible for merit to be the engine of the country’s economic life, where racism and other forms of discrimination operate to unlevel society, to a typology of democracy marked by the idea that there is a markedly oppressive global system (capitalism) and whose fight is not made by the search for equality, but rather by emphasizing the micro-identities within society. It is, therefore, a typology of democracy that claims treatment of the concrete case, i.e., the existence not of a broad vision of a society where equality is desired and sought not only formally but materially, where no one is discriminated against or benefited because of their sexuality, raciality, economic condition, attitude towards religion, or any other, but instead of the development of public policies based on the primacy of communitarianism, a vision of social niches based on ethnic and/or cultural identity. In this model, representativeness and the “place of speech” are emphasized, demanding the inversion of the primacy of majoritarianism, i.e., the submission of the notion of the majority to micro-identities, from which the State must lose any elements which, because they offer a broad dimension of belonging, tend to be mechanisms of oppression.
Finally, there is pluralist-contractual democracy, which is increasingly entrenched between the two previous ones, corresponding to the political-philosophical effort of the post-World War II period and which has brought us constitutionalism, pluralism, and the Welfare State. It is, in effect, an imperfect development of the Modern States through the gradual integration of the States into a global order of cooperation and defense of human dignity through the recognition and binding of a catalog of fundamental personal rights that the States must preserve, the most significant expression of which is the Universal Declaration of Human Rights. This typology starts from an idea of common ground, that is, that the existence of different currents of thought, various political parties, and social movements have communicating vessels which are, precisely, these fundamental inalienable and undruggable rights, the submission of power to the Law, the safeguarding of the elementary principles of constitutionalism: liberty, equality, dignity, republicanism. As pointed out above, it is an imperfect typology that has not yet been able to reorganize the distribution of wealth, correct social asymmetries and maximize merit as an economic motor, maintaining features long identified as flaws of capitalism.
It is in this last typology that I fit—recognizing the primacy of human dignity as axial and aprioristic and holding a programmatic vision of the principle of equality, which is not exhausted in the formal interpretation of equality before the Law and non-discrimination – negative or positive – in the letter of the Law but instead advocates a correction of the factual inequalities that affect certain social and economic groups, without, however, shifting the axis of correction of imbalances only to the level of identities. In this way, I understand that pluralist-contractual democracy best serves societies by aiming to compensate inequalities without reproducing historical divisions nor creating new ones through a politics of identity in which the subjects before citizens are members of specific groups that demand differentiated treatment. The principle of the common ground is, precisely, the affirmation that society must not be a patchwork but must hold a set of values – human rights – and a certain sense of belonging, which includes a primary common language, without erasing multiculturalism, but without making it a platform for permanent social ruptures and construction of an Empty State. It is, therefore, the tenuous balance of good sense between recognizing a widened majority identity and defending the different forms of identification and cultural and identity expression, in which none of the axes defeats the other.